Foi nos anos 1980 que o termo “meninos de rua” se popularizou no Brasil para designar um grupo social que se adensava nas grandes metrópoles dos países latino-americanos. Inicialmente, caracterizados como um problema social, hoje, em decorrência de uma série de estudos e pesquisas sobre este perfil populacional, há não somente uma outra compreensão do fenômeno, como nomenclaturas mais condizentes com a diversidade e a condição dinâmica do estar nas ruas. A transformação na forma de designar crianças e adolescentes em situação de rua é, sem dúvida, importante.
A linguagem, embora muitas vezes pareça inofensiva ou um elemento menor em discussões que exigem medidas práticas urgentes, é fundamental no processo de inserção de determinados grupos sociais em políticas que combatam os lugares de exclusão e preconceito aos quais foram submetidos.
Disputar a eficácia política do poder simbólico das palavras é confrontar uma série de estereótipos e preconceitos sobre os meninos e as meninas em situação de rua. Assim, construir outras práticas discursivas é um bom ponto de partida para não reproduzirmos imagens redutoras desses sujeitos.
Esses aprimoramentos dos termos, no entanto, precisam ser acompanhados de ações mais efetivas de enfrentamento à situação de moradia nas ruas, que segue ceifando infâncias e juventudes não só no Brasil como em toda a América Latina.
Se você olhar e reparar bem, verá que é debaixo das marquises dos prédios, nos centros das grandes cidades, nas praças e nos viadutos que a desigualdade social brasileira se materializa em sua forma mais brutal: crianças e adolescentes em situação de rua seguem tentando sobreviver à revelia de um sistema socioeconômico e cultural que lhes condena a toda sorte de vulnerabilidades — trabalho precoce, dificuldade no acesso à saúde e educação, exploração sexual, descriminação, violência por parte de agentes do Estado e carências infraestruturais para cuidados pessoais são apenas algumas das condições que compõem o contexto da situação de rua de crianças e adolescentes.
Para enfrentar esse cenário de incontáveis violações, é necessário conhecer sistematicamente esse perfil populacional. Nesse sentido, podemos dizer que a formulação e a determinação de um conceito oficial para caracterizar crianças e adolescentes em situação de rua foi uma das maiores e mais importantes conquistas da Rede Nacional.
A eficácia dessas e outras ações, no entanto, depende também da produção e divulgação de outros dados oficiais. Estudos que quantifiquem e caracterizem a população em situação de rua são imprescindíveis para pensarmos em políticas públicas efetivas. Não existem no Brasil dados oficiais sobre a quantidade de crianças e adolescentes que estão nessa condição. O IBGE, principal provedor oficial de dados e informações do país, não produz contagens nem dados censitários sobre esses meninos e meninas.
Entretanto, no âmbito do Termo de Fomento n.º 852357/2017, foi realizado um levantamento amostral de crianças e adolescentes de 07 a 17 anos em situação rua, abrangendo os 17 municípios brasileiros com população acima de 1 milhão de habitantes. A pesquisa se materializou no relatório Conhecer Para Cuidar, uma parceria entre a Associação Beneficente O Pequeno Nazareno e o Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CIESPI/PUC-Rio).
Termos como “em situação de rua”, “em condição de rua”, “que vivem nas ruas” e outras terminologias que imprimem significado semelhante foram ganhando espaço nos debates por traduzirem melhor a heterogeneidade dessa população e por darem margem à compreensão do fenômeno como um estado que pode ser efêmero e transitório (RIZZINI, 2019).
O conceito, aprovado pela Resolução Conjunta n.° 01/2016 (CONANDA/CNAS), estabelece a seguinte definição:
Crianças e adolescentes em situação de rua são sujeitos em desenvolvimento com direitos violados, que utilizam logradouros públicos, áreas degradadas como espaço de moradia ou sobrevivência, de forma permanente e/ou intermitente, em situação de vulnerabilidade e/ ou risco pessoal e social pelo rompimento ou fragilidade do cuidado e dos vínculos familiares e comunitários, prioritariamente situação de pobreza e/ou pobreza extrema, dificuldade de acesso e/ ou permanência nas políticas públicas, sendo caracterizados por sua heterogeneidade, como gênero, orientação sexual, identidade de gênero, diversidade étnico-racial, religiosa, geracional, territorial, de nacionalidade, de posição política, deficiência, entre outros.
Por fazer um nivelamento conceitual e metodológico sobre o tema no âmbito nacional, essa definição oficial é fundamental para orientar gestores/as, estudiosos/as, pesquisadores/as, técnicos/as do poder público e da sociedade civil na realização de:
GRADA KILOMBA
Artista e escritora portuguesa que nos ajuda a pensar no potencial de violência da linguagem
Na noite de 23 de julho de 1993, em frente à Igreja da Candelária, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro (RJ), dois carros com placas cobertas pararam e deles desceram milicianos que abriram fogo contra diversas pessoas que dormiam ali. Dos 08 jovens mortos, 05 eram adolescentes e 01 era criança. Todos eram negros.
O episódio, que ficou conhecido como “Chacina da Candelária” além de passar a marcar o Dia Nacional de Enfrentamento à Situação de Rua de Crianças e Adolescentes, nos informa de maneira emblemática que a violação ao direito habitacional tem cor. Nesse sentido, falar sobre a situação de rua infantojuvenil é, inescapavelmente, falar de desigualdade e discriminação racial.
Uma das pistas que temos para entender como opera o racismo é através de uma noção mais específica: a de racismo estrutural. Para o filósofo e professor Silvio Almeida (2018), o racismo é sempre estrutural, ou seja, ele é um elemento que organiza a política e a economia de uma sociedade. Em suas palavras, o racismo é uma manifestação “normal” de um corpo social, e não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade. Ele fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida contemporânea. Em outras palavras, o racismo estrutural não é um fenômeno que se resume a atos isolados de descriminação racial, mas sim a própria base sobre a qual nossa sociedade se organiza.
Como esses dados nos mostram, o racismo se desdobra em inúmeros cenários pautados pela desigualdade, pela precariedade e pelo extermínio. Nesse contexto, formular políticas para o enfrentamento da situação de rua de crianças e adolescentes demanda situá-las não só nas expressões da pobreza brasileira, mas também nos cruzamentos entre classe e raça.
O fato de 44% dos meninos e meninas em condição de rua se autodeclararem negros/as e 42% pardos/as torna necessária a intersecção entre marcadores de classe e de raça, uma vez que o que vem sendo tratado como “racismo estrutural” também incide sobre as dificuldades de acesso a bens e serviços básicos de qualidade que poderiam mitigar ou mesmo impedir os efeitos das desigualdades e das violações de direitos.
75%
das pessoas em condições miseráveis no Brasil são negros/as, segundo o IBGE/2019
66,7%
é o percentual de negros/as dentre a população encarcerada, conforme o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
75,7%
das vítimas de homicídio no país também são negras, de acordo com o Atlas da Violência (IPEA/FBSP – 2020).
Considerando os resultados parciais do levantamento amostral, com base nas informações de 247 crianças e adolescentes em situação de rua, foi possível traçar um perfil demográfico que reforça o caráter heterogêneo dessa população: além de não haver um motivo único associado à situação de rua, essas meninas e meninos abrangem diversidades de gênero, orientação sexual, étnico-racial, religiosa, geracional e territorial e possuem relações distintas com a rua, com a escola, com a família e com o trabalho.
No entanto, muito embora seja impraticável traçar narrativas e características únicas para esses sujeitos tão plurais, os dados do relatório apontam para um perfil predominante: adolescentes, negros ou pardos, do sexo masculino, com trajetória de longa permanência nas ruas.
SILVIO ALMEIDA
Somos uma rede nacional de organizações que lutam pelos direitos de crianças e adolescentes em situação de rua. Desde 2005, nos mobilizamos pela existência e divulgação de dados oficiais, por políticas públicas específicas, pela afirmação da educação social de rua e pela garantia dos direitos fundamentais, sobretudo o direito à convivência familiar e comunitária.
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